MARUJO DA LUZ
Daniela Name
No Canto II de A Divina Comédia, Dante narra o momento em que, ao sair do Inferno, ainda na praia do Purgatório na companhia de Virgílio, viu uma luz resplandecente saindo da água: era um anjo que conduzia ao porto as almas recém-chegadas da
Terra. O poeta Jorge de Lima faz alusão a este mesmo personagem no Canto I de A invenção de Orfeu, batizado de “Fundação da Ilha”. Nos dois livros, o anjo marujo não usa nem velas, nem remos: a balsa ganha prumo com suas asas e é movimentada pela força de sua luz. Delson Uchôa é um leitor das duas histórias. Conterrâneo do alagoano Jorge de Lima, o pintor deu o nome de Dante a um de seus filhos. Ao olhar para o conjunto de seus trabalhos recentes, talvez consigamos enxergar o brilho desta criatura ao mesmo tempo alada e submarina, uma presença encantada que nos permite navegar no rio que banha mundos distintos.
Uma fluidez própria da água aparece de maneira direta ou indireta em todas as grandes pinturas expostas nesta mostra. Outro ponto em comum é a noção de trânsito, de uma imagem ou mensagem que é conduzida de um espaço-tempo para outro, buscando novas configurações e experiências. Há ainda a sobreposição: camadas de tinta e de cor que se acomodam umas sobre as outras e se incomodam, criando planos e horizontes para desvendar. Nos dois trabalhos mais antigos, Oceano e Equinócio, ambos de 2012, é possível ver duas abordagens distintas e igualmente potentes dessas questões.
Em Equinócio, o tecido que antes encampava guarda-chuvas vindos da China, os mesmos usados na série de fotografias e performances do Bicho-da-seda, ajuda a dar forma a quatro prumos. Cada um deles é dividido em semicírculos, criando dois hemisférios. Essas agulhas de corpo arredondado são a um só tempo os quatro pontos cardeais e um emaranhado de referências possíveis à história da arte: as lanças de Ucello, os minaretes turcos, as torres da vanguarda russa. As cores que se alternam entre os amarelos e os vermelhos e rosas, claro e escuro, dia e noite, revelam que o equilíbrio destes prumos não vem dos centímetros nem do magnetismo, mas de uma ideia de ciclo. Na obra de Uchôa, o jogo entre as cores é sempre uma dança com o sol e, portanto, uma conversa com o tempo. Sua cor não é matéria-tinta, puro pigmento, e sim cor-luz, incidência luminosa sobre a paisagem, tanto aquela que está do lado de fora quanto aquela que se forma dentro de nossos corpos, retina e memória.
Oceano deixa isso bastante claro: criado durante as experiências do artista com a bebida ayahuasca e as cerimônias do Santo Daime, o trabalho traz a lembrança de que o mundo submarino é povoado por cores fluorescentes e tons capazes de iluminar a escuridão abissal. Uchôa constrói uma rede abstrata e geométrica, mas subverte a noção de um grid moderno ao infiltrar sua trama com imperfeições e embaralhamentos – momentos em que se esgarça e não se completa. No fundo da rede, está o oceano, que só se enxerga parcialmente da beira d’água, superfície da pintura. E o que se pode ver é a sobreposição de camadas de cor-luz. Esses fachos luminosos parecem submergir da imensidão de azuis. Como peixes alados, esquentam a rede em tons de amarelo, alaranjado e rosa, e parecem quase conseguir romper seu trançado – lembrança do véu arquitetônico de um muxarabi. Há, nesta pintura, um amarelo que é quase ouro, evocando Klimt e sua pintura de caleidoscópios. Como Uchôa, ele foi dono de uma obra que esteve nas fronteiras entre a abstração e a figura, âncora de seu tempo e nostalgia daquilo que era antes; pintura que se come pelas beiras. A pororoca entre estes dois artistas poderia se dar nas águas do Bizâncio, com a investigação dos limites da pintura para além da janela renascentista. Pintura como um acontecimento luminoso, pois cria sua multiplicidade de planos a partir de sua capacidade de reverberação da cor.
Nas viagens elípticas proporcionadas por Uchôa, marujo da luz, fomos até Klimt, mas poderíamos chegar a Matisse. Há em comum entre o artista alagoano e o pintor francês a transformação da cor em corpo, linha e mancha reunidas indistintamente, além de um desavergonhado e bem-sucedido flerte com a arquitetura naquilo que ela tem mais inútil e mais belo: o ornamento. Entretela, de 2014, ilumina estas características. A retomada dos prumos de Equinócio e da ideia de rede presente em Oceano ganha aqui novas possibilidades de leitura, com a construção de alicerces de uma arquitetura virtual em uma tela que veio da arquitetura “de fato”. Explica-se: este é um trabalho da série que Uchôa chama de “pinturas cultivadas”. Ele deposita camadas e camadas de tinta no piso de seu ateliê e assim inicia o “cultivo”, criando a tela a partir desta semeadura de matéria pictórica. O que se vê na parede como espelho e horizonte foi um dia pele do chão. A tridimensionalidade que se insinua nos planos construídos por diagonais e padronagens geométricas tem como alicerce a arquitetura real do espaço de criação do artista. É um trabalho criado a partir do processo, pintura feita de pinturas – e o título Entretela enfatiza isso de maneira muito complexa e feliz.
Neurocondução, trabalho mais recente desta mostra, enfatiza a relação de Uchôa com uma cor que viaja e se transforma no tempo. O título é uma das inúmeras referências biológicas e clínicas com que o artista, formado em Medicina, povoa sua história nas artes plásticas. Mas Neurocondução evidencia mais uma vez o deslocamento e a metamorfose, que, nesse caso, é fruto de uma nova investigação. O artista preparou uma tela feita de lona muito grossa e a dobra como um origami. O desenho em preto é feito a partir das linhas de dobra, memória deste alicerce, desta pintura-corpo. Uchôa expõe, então, esta superfície ao ar livre, à ação do sol e da chuva. A tinta rosa presente no primeiro plano da composição é uma espécie de aquarela pluviométrica: desenho feito pelas nuvens e suas precipitações, lagoa de cor que secou sobre a geometria e a reconfigurou. Essa é uma pintura que abre novas veredas para a relação deste artista inquieto com a paisagem e com a topografia. Novas águas, outras viagens espiraladas e luminosas.
Se fôssemos terminar este texto também numa elipse, poderíamos voltar a Jorge de Lima: “Não sou a Luz mas fui mandado/ para testemunhar a luz/ que flui deste poema alheio”.