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PRIMEIRO CEGAM, DEPOIS ILUMINAM

Moacir dos Anjos

Iniciada na década de 1980, a trajetória de Delson Uchôa pode ser repartida em duas, embora a parcela mais recente guarde e atualize conquistas feitas na primeira. Com vários pintores de sua geração, explorou, em seus anos de formação no ofício – passados, em sua maior parte, no Rio de Janeiro –, a liberdade da reinvenção coletiva de um meio precocemente dado como exaurido. Atento à profusão de imagens do cotidiano e da história da arte à disposição de todos, fez trabalhos que as citavam sem apelo a qualquer forma de ilusionismo, empregando campos definidos de cor como elemento central de sua representação em tinta. No início da década seguinte, contudo, volta a Maceió – cidade onde nasceu e morou até ficar adulto –, onde abandona o repertório antes adquirido e ressignifica, em função da memória atávica de signos e luzes, o que havia incorporado como instrumento de pintor, embora mantendo intocado o interesse por ver o mundo através de cores. É a partir desse momento que sua obra se singulariza e que começa a forjar a originalidade da qual é detentora.

As pinturas maduras de Delson Uchôa são clarões: primeiro cegam, e só depois iluminam. Em todas, há uma cor quente que domina o espaço pintado – quase sempre de grandes dimensões – e também seu entorno próximo, provocando o estímulo alongado da retina. Amarelo, verde, azul, vermelho,  odos pulsam, em diferentes trabalhos, de modo incontido. Embora quando observadas de longe é que mais clareiem o olhar, é vendo suas pinturas de perto – de uma distância em que a visão se avizinha das superfícies entintadas – que se percebe que suas luzes intensas são feitas, em sua maior parte, de delicados fios. São inúmeras linhas de cor bem finas, cordões de algodão, tramas de juta ou tecido que, amalgamados sobre uma lona bruta e abrigados sob uma resina lisa, tecem o corpo e o brilho de seus trabalhos. Por meio dessas intricadas construções cromáticas – feitas de agrupamentos de delgados traços retos e curvos e de alguns poucos campos onde o monocromo domina –, o artista busca apreender a luz que habita o campo perceptivo que separa “a visão e o visto”, a qual traduz estados de espírito diversos (alegre, austero, saudoso) e não se deixa capturar por quaisquer outros procedimentos cognitivos.

A luz pintada é, portanto, em sua obra, forma irredutível de conhecer e registrar um fato físico da vida, pouco se prestando à descrição de fi guras ou cenas.

A tessitura complexa das pinturas promove, entretanto, sua inserção em tradições, se não conflitantes, com frequência dispersas. É desde logo patente, nesses trabalhos, uma negociação constante entre as cores que o artista enxerga à volta (iluminadas pelo sol do litoral do Nordeste do Brasil) e aquelas pelas quais é atraído em uma história seletiva da arte, em que Paul Gauguin, Lygia Pape, Van Gogh e Hélio Oiticica são atados, com vários outros, em uma genealogia nova. De Auriflama, composta de centenas de quadrados regulares ordenados sobre a superfície da lona, emana uma luz vermelha e amarela que dá corpo à cor da chama, remissão tanto a uma latitude de morada solar quanto aos crus espaços cromáticos inventados pela arte moderna e contemporânea. Em Descampado, um horizonte vibrante – criado de tons claros que se enlaçam (amarelos e azuis, principalmente) – lembra as paisagens abertas da beira-mar ou do sertão nordestinos, ao mesmo tempo em que inscreve a pintura na tradição romântica de arresto, em superfícies pintadas, do ar rarefeito que embota a visão e faz confundir realidade e engenho.

Essa vontade de mistura se expressa, também, nas referências simbólicas que os trabalhos de Delson Uchôa carregam. Muitas das complexas imagens criadas são devedoras de construções vernaculares originadas na região onde mora e, igualmente, de invenções visuais de procedência europeia, tais como o construtivismo ou a arte óptica. Em Sudário Caeté, uma composição esquemática que lembra um rosto é espelhada verticalmente sobre tecido espesso, fazendo com que olhos e nariz formados de inúmeros filetes de cor – referência plausível a máscaras ritualísticas de comunidade indígena que habita, desde há muito, o que é hoje o Nordeste brasileiro – passem a ser vistos, concorrentemente, como estruturas laicas e cultas, despregadas do âmbito da religião ou da magia. Também em Catedral TG – trabalho de quase dez metros do chão ao alto –, o artista condensa, em ideia e fatura, o desejo de aproximar o apartado. Se, cifrado no nome, há referências simultâneas ao artista moderno uruguaio Joaquín Torres García e à cultura tupi-guarani, é em sua estrutura formal, misto de antena e totem, que mais claro fi ca o intento de promover o desmanche do que é diverso. Alicerçada em clarão intenso de cores convulsas, a pintura aninha ecos de falas profanas e de culturas nativas quase mortas; desfazendo-se de luz à medida que se ergue, torna-se, contudo, arquitetura solene e quase inerte. O que, na base, sugeria girândola e festa se transforma, no topo, em hóstia e reza. Não desvela, porém, onde o que era terreno deixa de ser e onde o tom que era quente se amorna. Já em Tear, é a pintura culta feita sobre uma superfície construída artesanalmente que sugere a urgência de Delson Uchôa em articular o que possui origem variada. Percorrendo e cobrindo, com pigmentos distintos, as tramas de fibras vegetais que servem à construção de esteiras,

termina por transferir e expandir, para a lona ampla onde cola o material de que se apropria e com que desenvolve seu trabalho, a imagem pintada que o relevo dessa matéria em potência traz.

A partir de memórias, materiais e procedimentos fincados em suas experiências reais e imaginadas de Nordeste – mas raramente de referências iconográficas, o artista esboça, portanto, maneiras próprias de lidar com o sombreamento dos limites arbitrários de representação simbólica da região, criando pinturas que continuamente trafegam entre os vários espaços e tempos em que é instado a viver na contemporaneidade. Por meio de seus trabalhos, a cultura regionalista amolece e deixa gradualmente de ser um território “fechado”, sem que isso implique uma recusa ao cotidiano habitado em favor de uma afiliação a códigos criados em outros espaços.

Suas pinturas são construções híbridas, que traduzem e aproximam, de modo sempre inconcluso, formações culturais diversas. A afeição de Delson Uchôa pelo que é impuro não estanca, contudo, o desmonte de separações rígidas entre culturas que, de maneiras diversas, lhe são próximas, transbordando para uma atividade autorreflexiva sem fim certo. Vendo seus trabalhos prontos e de perto, são evidentes, em muitos deles, os acréscimos, junções e sobreposições de suportes, sejam recentes ou velhos. São perceptíveis também as camadas finas de tinta recente que encobrem partes de telas há muito pintadas. Uns e outras são vestígios da permanente ação do artista, ao longo de vários anos, sobre aquilo que faz. Desmanchando, combinando e alargando pinturas já realizadas, acresce novas matérias e gestos ao que resiste ao seu impulso autofágico, em procedimento agonístico de destruição que, entretanto, cria novas imagens.

Não é essa continuada elaboração, todavia, resultado de um raciocínio analítico que pondera o que foi já feito e projeta o resultado plástico de uma intervenção adicional. Há nela muito de ação intuitiva, em uma aproximação consciente da estratégia criativa que repentistas adotam, na qual repertório (de rimas, texturas ou cores, pouco importa) e improviso se articulam e produzem, em um contexto específico, o que ainda não se conhece.

Em Muiraquitã, a intensa luz diurna e verde da mata filtrada e refletida em flores, folhas, troncos e cipós – emerge da miríade de elementos pintados, como se fios de tinta fossem células clorofiladas. Feito sobre um suporte que é resultado da agregação de outros, o trabalho testemunha o demorado embate que Delson Uchôa promove entre uma ideia que se torna tinta e uma luz pintada que orienta o pensamento seguinte. Processuais e autorreferentes, suas pinturas têm, em potência, não só uma dimensão crescente, mas, também, uma duração e feitura incerta. Apenas quando não mais tem acesso a um trabalho é que pode considerá-lo acabado. A ideia de passagem do tempo é, portanto, abortada em sua obra. Ao continuamente modificar e atualizar o que já fez, apaga, de

algum modo, o passado; ao saber que aquilo que pinta agora pode ser depois mudado, a projeção do devir fica também destituída de significados. O tempo para o artista, portanto, é sempre o de agora, o que torna a datação de suas pinturas móvel e incerta.

Por serem territórios de mestiçagem física e poética, os trabalhos de Delson Uchôa despertam, por fim, o desejo do toque ou do roçar, vontade de envolvimento sinestésico que por vezes o artista concede. Em Muxarabiê, a construção pictórica não é feita sobre uma superfície apenas, mas em três planos sobrepostos que são atados somente por cima. A camada da pintura que esconde as demais é formada por muitas folhas de papel celofane translúcido, que, coladas umas às outras, abrigam, em seu interior mole, uma composição feita de losangos coloridos entrelaçados. Pintada sobre folhas internas, essa grade evoca o elemento arquitetônico de origem mourisca que dá nome ao trabalho, o qual permite que rua e interior de casas sejam espaços separados e, ao mesmo tempo, comunicáveis. Levantando esse plano com as mãos, o observador “entra” na pintura e, com sua primeira camada às costas – através da qual a luz ambiente é filtrada –, depara-se com uma lona pintada em listas verticais amarelas e pretas, sentindo-se já liberto das convenções que o apartam, física e simbolicamente, de um trabalho de arte. A dissolução das diferenças entre o público e o privado é completada quando essa outra pintura é também levantada e o observador se vê no “ventre” do trabalho: uma lona branca onde pode adicionar o que quiser – frases, imagens – com lápis que pendem do alto.

A união entre pintura e observador – e a crítica implícita às definições separadas e usuais dos dois – acontece de maneira diversa em Rói-Rói. Nesse trabalho, Delson Uchôa pinta a propagação centrífuga, a partir de dois núcleos arbitrários, de feixes de cores variadas. Em um canto inferior da tela, suportes cilíndricos e também pintados guardam diversos exemplares do colorido brinquedo popular com que o artista nomeia a pintura. Posicionados de modo a convidar ao manuseio, os rói-róis são tomados por adultos e crianças e postos a girar, diluindo suas formas e cores em velocidade que a visão não segue. Essa interação corporal com o trabalho conduz logo o olho, entretanto, a ver, nas imagens pintadas, a descrição possível de dois dos inúmeros instantes que compõem aquele movimento acelerado. O som rouco que esse gesto lúdico produz autoriza qualquer um, ademais, a enxergar, na pintura que acolhe os brinquedos, o seu melhor equivalente visual.

Feito de cores estridentes e de ruídos altos, o trabalho desorienta quem busca encontrar, nele, a confirmação de certezas sobre a natureza do campo pictórico. Recompensa, entretanto, quem se esquece de limites e se deixa banhar por sua luz clara.

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Muxarabiê

Acrílica sobre lona, resina e tinta acrílica coagulada em papel celofane

302 x 270 cm

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Auriflama

Acrílica, resina e tinta sobre lona

280 x 280 cm

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Sudário Caete

Acrílica, resina e tinta sobre lona

340 x 240 cm

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