NO VENTRE DA BALEIA
Jacopo Crivelli Visconti e Agnaldo Farias entrevistam Delson Uchôa
Jacopo: Gostaria de começar nos anos 1980, quando você começou a pintar e a expor profissionalmente. Como você avalia, hoje, aquele momento de auge da pintura?
Uchôa: Sempre gostei da condição de pintor. Já na época, minha preocupação era fazer uma pintura que tivesse uma identidade, e não era nem uma questão de uma identidade brasileira, ou latino-americana, como é percebida hoje em meus trabalhos, mas uma preocupação bem mais localizada: eu queria que minha pintura remetesse ao Nordeste. Eu tinha uma curiosidade muito grande a respeito do que eu via no entorno, no Nordeste: nos parques de diversão, nas alamedas de caminhão, na publicidade... Uma arte pop, sabe? Como nas barraquinhas de picolé.
Jacopo: Como era sua pintura naquele momento?
Uchôa: No início, era figurativa. Logo depois, comecei a olhar para a geometria popular, a perceber que a geometria popular estava presente, digamos, em uma pintura de ponta, contemporânea, vinda da Bauhaus, de todo o neoplasticismo. A ideia, então, era provocar uma colisão das duas pinturas: uma, popular, bem brasileira, nordestina, e a outra, europeia. Dessa colisão, eu pegava os fragmentos, e isso de alguma forma se mantém até hoje, mas é claro que fui avançando. Na questão da cor, por exemplo: naquele momento, as áreas eram de cores primárias, cores escuras, e eu buscava a vibração, a contraposição de uma cor e outra. Depois, minha preocupação principal passou a ser o processo de iluminar, e comecei a pensar em como desmaterializar a cor, transformando-a em luz: desde o começo, de alguma forma, minha preocupação era luminosa.
Jacopo: Havia, nessa época, algum artista em quem você se reconhecesse, com quem tivesse uma troca?
Uchôa: Não. Eu estava bastante isolado, numa espécie de zona de silêncio. Até parecia que a própria arte estava isolando a pintura, e isso aumentava o meu isolamento.
Jacopo: E Collares? Lembro de você ter citado alguma vez o nome dele e achei interessante, porque ele é um artista muito urbano, de alguma forma, algo que você não é...
Uchôa: É verdade, mas eu tive contato com uma série de Gibis do Raymundo Collares e morria de inveja de não ter feito aquilo... [risos] Ali estava a cor! E, nesse tempo, era a cor que me encantava, e era a cor que traduzia para a pintura a estridência cultural nordestina ligada aos folclores e a todas as nossas lendas.
Jacopo: Gostaria de falar um pouco sobre o que você chama de passagem da Antropofagia para a Autofagia. Sei que esse é um assunto importante. Você trabalha anos nas mesmas telas...
Uchôa: Exatamente. Algum tempo antes da Bienal Antropofagica [a 24ª Bienal de São Paulo, 1998, com curadoria de Paulo Herkenhoff, da qual Delson Uchôa participou, tinha como tema geral a Antropofagia], eu tinha acabado de voltar a Maceió, reuni todo meu acervo em um lugar e fiquei abismado com a quantidade de trabalhos que eu tinha prontos e outros em andamento, e pensei: “O que é isso? Mas isso e meu! Agora, vou me alimentar de mim mesmo”. Eu acho que esse processo, essa minha volta ao Nordeste, meu pensamento autofágico me fizeram fugir da aluvião globalizada, que começa a ganhar grandes proporções exatamente nos anos 1990 e na passagem do século. Isso foi minha salvação.
Jacopo: Então, você morava em Maceió, quando foi convidado para participar da 24ª Bienal?
Uchôa: Sim. A primeira vez que voltei foi em 1989, mas ainda não foi para morar. Minha mulher estava grávida, e eu queria que meu primeiro filho nascesse em Maceió. Mas morei no Rio de 1983 até praticamente 1991. Minha filha nasceu em 1990, e eu ainda estava no Rio de Janeiro.
Jacopo: Antes. em 1980, terminei meu curso de medicina e passei todo o ano de 1981 em paris. Eu já estava envolvido, já desenhava e pintava e decidi ir à França. Justifiquei para a família dizendo que ia em busca de um estágio em medicina, mas confesso que nunca passei na porta de um hospital... Fui mesmo para visitar os museus: eu morei em Paris, mas viajei por quase toda a Europa em busca de museus... Por exemplo, eu diria que, em princípio, não fui a madri, fui ao Prado. Eu chegava e, no primeiro dia, já almoçava no museu; inclusive já conhecia, através de pranchas, muitas das pinturas. E, como lá nunca mudam os quadros de sala, eu tive uma espécie de déjà vu, sabe? Quando eu ia entrar em uma sala, eu sabia o que ia encontrar, que ali estava Velásquez, que ali estava Bosch, onde eu ia encontrar Rafael... Eu fui à Holanda porque queria ver Van Gogh, à Bélgica, por conta da pintura flamenga, fui a Arles, a Nice, a Cannes, para ver Picasso, para ver Matisse...
Jacopo: E, voltando da Europa, foi morar no Rio de janeiro. É isso?
Uchôa: Na verdade passei um tempo em Belo Horizonte, porque tinha recebido um convite para fazer uma exposição lá. Fui com dois meses de antecedência, e fiquei oito meses. Nesse período em Belo Horizonte, mandei trabalhos para o Salão Nacional, no Rio de Janeiro, e fui selecionado. Quando cheguei ao Rio, depois do Salão Nacional, por intermédio de Thomas Cohn, que viu minha pintura no Salão Nacional, fui convidado para participar da exposição como vai você geração 80?, [Escola de Artes Visuais do Parque Lage, Rio de Janeiro, 1984]. Na época Thomas Cohn estava no Rio de Janeiro, ele foi muito importante nos anos 1980, tanto para o Rio de Janeiro quanto para o próprio país. Foi um momento muito interessante, e muito curioso, porque parecia que os artistas paulistas precisavam e um reconhecimento carioca. Como Leda Catunda, Leonilson, Sérgio Romagnolo, deixa eu lembrar mais outro... Edgar de Souza
Jacopo: Zerbini...
Uchôa: Zerbini. Todos eles expondo com o Thomas. Eu também estava louco para expor com o Thomas, mas ele disse algo como: “Delson, eu tenho muitos artistas jovens, e estou meio congestionado”. Daí eu recebi um convite da Galeria Saramenha, que, vendo Thomas tratando da jovem pintura brasileira, entendeu que precisava renovar seu acervo de artistas, e me convidou. Eu fui falar com o Thomas e disse, “Recebi um convite”, e ele me disse: “ Acho que você deveria ir para lá, porque ainda vou demorar um pouco para expor seu trabalho...”, enfim, ele ia me cozinhar. E a Saramenha estava precisando, e eu também estava precisando... Naquela época era normal ter artistas exclusivos e remunerados mensalmente, então assinei um contrato de três anos, com duas individuais para a Galeria Saramenha. Nessa época, eu continuava, como sempre, com uma pintura com uma cor, um pigmento muito quente: a ‘ultima exposição na Galeria Saramenha eu fiz pintando em cobertores de lã, porque queria um suporte bem quente para tratar de uma cor muito quente. Depois dessa exposição, acho que o Thomas descobriu que eu estava trazendo algo novo... Aí eu voltei para ele, e fiz mais duas individuais com o Thomas na galeria dele no Rio, ainda na Barão da Torre. Depois ele se transferiu aqui para São Paulo...
Jacopo: E na galeria do Thomas, aqui em São Paulo, você não expôs?
Uchôa: Aqui não.
Jacopo: Nessa época você para Maceió. Eu gostaria de saber como foi esse retorno, porque a vida cultural que havia no Rio, ou aqui em São Paulo era outra coisa.
Uchôa: Pois é, eu pensava que isso seria um grande prejuízo para a minha pintura. Mas houve aquela questão de reunir toda a minha obra em um ateliê, e descobrir quanto eu já tinha produzido. Alguns trabalhos precisavam de restauro, e comecei a tentar restaurá-los, mas logo percebi que não havia restauro, e que eu não era restaurador. E, na verdade, comecei a gostar da anti-mancha das áreas que tentei restaurar,e, em vez de restaurá-los, comecei o que chamo de autofagia.
Jacopo: É a partir desse momento que a ideia do tempo que passa, da demora no processo de criação do quadro, se torna um aspecto importante?
Uchôa: Eu comecei a esquecer o calendário gregoriano, mesmo, talvez, até pelo meu isolamento e pela falta de vida cultural. Eu estava como numa zona de silêncio, e daí comecei a pensar e a perceber que tempo seria mais uma contribuição para dentro da minha cultura, e a pensar no tempo agostiniano. Tanto que este trabalho [aponta para Curral da Praia] foi iniciado em 1989, portanto na década de 1980 passa a década de 1990, e chega a 2003, sempre mudando, eu o exponho no Instituto Tomie Ohtake, e nessa altura eu já tinha consciência de que queria falar do tempo, mostrar o tempo. Então havia áreas pintadas nos anos 1980, áreas retomadas e pintadas nos anos 1990, e áreas de 2003, e agora de 2009...
Jacopo: Há artistas que consideram o quadro, ou a obra em geral, apensa o resultado de um processo. A minha impressão é que, para você, o processo é o instrumento para chegar ao quadro, é diferente: ou seja, o processo é muito importante, mas o que importa é a obra, não é?
Uchôa: Tenho certeza de que, mais adiante, em algum momento, vou chegar e mostrar que o criado é menor do que o processo de criação, mas não agora. Tenho esboços de ideias em movimento, que não posso jogar como uma avalanche. Eu tenho plena certeza de que o processo é mais forte que o criado. Veja, já no meu ateliê no Rio, eu pintava as paredes, como um afresco: já estava, pintava o chão, e tudo mais. E quando cheguei em Maceió, no meu terceiro ateliê, onde eu estou faz nove anos, me propus a criar um ambiente de pintura e viver dentro dele.
Jacopo: Que é o que você faz agora.
Uchôa: Que é o que eu faço agora. Eu moro realmente dentro da pintura: pinto as paredes, o rodapé, o chão. Isso transforma completamente a percepção da luz: é bem possível que enquanto a gente conversa eu vá me arrepiar... [Risos] O primeiro piso foi pintado de verdade, verde em inúmeras variações, e, de repente, cada ladrilho era tratado como uma célula, e quando vi meu piso ficou clorofila. A luz muda constantemente ao longo do dia, desde o momento em que o sol começa a surgir, a temperatura muda pela casa toda...
Jacopo: Essa relação da sua pintura com a arquitetura, de ela realmente virar uma arquitetura, é bem mais antiga do que essas experimentações, não é? A escala das suas obras já é quase arquitetônica, além disso, há obras, como Muxarabiê, em que você entra literalmente na pintura...
Uchôa: Exatamente. E com o Xadrez de Chão, além de você entrar na pintura, o seu pé está pisando em pintura. Você está completamente envolto em pintura. Você era Jonas, está dentro da baleia, no estômago da pintura. E é esse momento, esse momento que eu definiria como religioso. Estou levando você para endoderme, para o outro lado, É assim, acho que foi o que o Lucio Fontana não fez, só anunciou.
Jacopo: Ele só abriu, mas não deixou entrar.
Uchôa: [Risos] Ele só abriu. Eu não. eu quero que você vá para sentir como é por dentro mesmo. E é lá onde eu digo que, comentando agora, um dia vocês têm de entrar, para ver o que lá existe uma luz calorosa. É uma luz, é um afeto. Dentro desse afeto desse abrigo, eu estava dizendo que não queria falar em referência dos clássicos do meu século, pois se eu estou me autofagiando, para que comentar, ainda, as antropofagias? Mas acho que, assim, dentro do Subcutâneo, talvez tenha sido, você possa ter o sentimento de Beyus quando foi envolto no feltro e na gordura
Agnaldo: Você produz em escalas diferentes? Seu trabalho é grande; mas me diga uma coisa: quando começou a ficar grande, ou foi sempre grande?
Uchôa: Olha, sempre foi grande. Talvez entre aí um elemento do neoconcretismo, o desejo de provocar intimidade: quando um quadro é grande, você perde o campo cego para além dele, e você entra, você participa, quer queira, quer não; você passeia, sem saber, dentro da pintura. E chego a avançar mais depois disso, a ponto de, no Subcutâneo, como Xadrez de Chão embaixo, como estávamos comentando, eu me sentir Jonas, vivendo lá dentro...
Jacopo:: Do ponto de vista técnico, como você faz isso? Você passou uma resina no chão?
Uchôa: O chão é barro batido, e com muito sal da maresia, e eu percebia que quando a Meire varria, todo dia saía barro, como nas casas coloniais. E a Meire não gostava daquilo. Então passei a primeira camada de resina, para selar, e em pouco tempo vi que surgiam umas pequenas bolhas, e eu poderia arrancá-las. Quando percebi que podia arrancar, aí foi... [Risos] Galões e, não, e latões, sabe... E foi aí que comecei a precisar de ajudantes, para que pintassem como um rejunte, como se o chão fosse todo de ladrilho hidráulico, decorado. Mas é uma escala enorme: trˆ´s quartos, duas salas, uma escada... Depois de eles terem feito todos os rejuntes, pedi que pegassem um pincelzinho fininho acompanhando a marca da tinta que já estava no rejunte. Isso já é bem mais diícil: não existe o rejunte, para orientar e cobrir, e sim uma linha reta. Nesse período ou estava lendo os Manuscritos do Mar Morto, e há uma referência que aparece lá, de um único cara que surge entre os essênios, e ele respondia pela alcunha do mestre da retidão, e isso tinha ficado na minha cabeça... Enfim, pedi para fazerem a linha reta, mas eles não conseguiam, não gostavam, não suportavam fazer linhas retas. Aí me lembrei da história, e disse a eles: “ A minha linhada reta é diferente da sua linha reta, que é diferente da sua linha reta, o que me interessa é a tortura da retidão de cada um”. Assim eles conseguiram.
Agnaldo: E o chão se converteu em pintura?
Uchôa: Total. Depois, arranquei pra fazer o Xadrez de Chão, que hoje está com o Bernardo Paz, e que consiste dos retalhos de dois quartos e duas salas.
Agnaldo: A palavra poética é muito importante para você, não é? Lembro de você falar em Dante, Jorge de Lima... Você lê muita poesia?
Uchôa: Muita. Em Dante há realmente coisas maravilhosas, ele foi me ensinando também a viver... O próprio Xadrez de Chão, o início do do Xadrez de Chão, era espelho do Letes, onde eu queria esquecer, verdadeiramente, todos os momentos desagradáveis da minha vida. E é o que aconteceu com Dante depois que ele se banha. Aliás, é do outro lado do Letes que ele vê Beatriz pela primeira vez, e é no Letes que ele esquece todas as experiências desagradáveis, e permanece na memória só o bem praticado, que é pra quem vai entrar no reino dos privilegiados... Há uma coisa mais forte, ainda hoje, que é essa forma de trabalhar, é essa busca do permanente estado de arte. Aí, essa vem com Joyce.
Jacopo:: Finnegans Wake
Uchôa: Finnegans Wake, Primeiro veio Ulisses, tudo bem. Mas depois, atualmente, é Finnegans Wake. Não foram dezessete anos para ele escrever Finnegans Wake? Aliás, tudo isso, digamos que fosse, ainda, antropofagia. Mas é Joyce que ensina a ser autofágico. É Joyce que me explica que é só você soltar o fluxo, sabe, e pronto. E aí, o que eu estou conversando com você, o que estou misturando no assunto? Foi o que ele fez naquela escrita, sabe: é erudição, é prosaico, é vulgar, é o teatro, é todas as forma... é assim que eu pinto.