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NOVA ROTA DA SEDA
Daniela Name
Delson Uchôa inaugura uma individual no Ludwig Museum, em Colônia, Alemanha, no próximo dia 22 de novembro. Tive a honra de ser convidada a fazer um texto sobre sua série Bicho-da-seda, que compartilho a seguir.
Delson Uchôa fez os primeiros trabalhos para a série Bicho-da-seda em 2011. Nascido em Alagoas, Nordeste do Brasil, e até hoje residindo na cidade de Maceió, capital do estado, o artista viajava de carro por uma estrada rumo ao sertão quando avistou uma mulher se protegendo do calor com um guarda-chuva de seda sintética. O brilho da peça no sol a pino fez com que ele enxergasse o tecido impermeável em sua propriedade reflexiva, capaz de transformar cor em luz. Era como se a cor caminhasse à sua frente, se modificando sob a influência do sol. O exame mais detalhado das padronagens dos guarda-chuvas levou à constatação de que estes objetos “made in China”, provavelmente produzidos com mão de obra barata ou escrava, traziam reproduções de espécies da fauna e da flora brasileiras. Esta nova rota da seda, feita de imagens em trânsito, vem se desenhando como uma das bases para este trabalho.
O bicho-da-seda é uma lagarta, a Bombyx mori, domesticada para a produção têxtil há séculos. Os sucessivos anos de cativeiro fizeram com que a crisálida desta espécie se transformasse em uma mariposa que perdeu a capacidade de voo, não conseguindo viver na natureza e dependendo do homem para se alimentar. Simbolicamente, é como se o bicho-da-seda fosse tão escravo quanto os milhares de seres humanos submetidos a trabalhos forçados nas fábricas espalhadas pelo gigantesco território da China e além das fronteiras do país, até mesmo em porões de navios sempre em alto mar – uma senzala apátrida e deslizante, cujos rastros são apagados pelas águas. A rota da seda que o viajante Marco Polo percorreu no século XIII foi um caminho de disputa econômica e de ganância, mas também um esgarçamento das fronteiras entre Oriente e Ocidente. A seda cerziu pontes entre mundos, intercambiou culturas e alavancou o desenvolvimento de algumas civilizações. O circuito do bicho-da-seda que emerge no trabalho de Uchôa também fala de culturas e imagens em trânsito, mas, em vez de ser agregador, funciona como um predador de identidades.
Ao longo dos últimos quatro anos, o artista realizou trabalhos em múltiplos suportes para a série. Seu “bicho-da-seda” se transformou em um personagem, com algumas características bastante claras e permanentes – caso de sua vocação solar, heliotrópica -, outras propositalmente mutantes. O “bicho” é tratado por Uchôa como uma infestação ou uma praga, um vírus que se transforma para se adaptar aos novos ambientes visitados e com isso se torna poderosíssimo. Em suas encarnações objetuais e escultóricas, ele pode ser esférico, transformar-se em antena parabólica, projetar-se como um feixe vegetal ou de gametas, ora enfatizando os côncavos, ora os convexos da forma dos guarda-chuvas, no Brasil também chamados carinhosamente de “sombrinhas”. (É bonito pensar que esta é uma obra que fala de cor e luz a partir de um objeto feito para proteger da chuva, mas que em nosso país tropical e no próprio Oriente também pode proporcionar sombra, ainda que uma sombrinha – refresco diminutivo para o calor sertanejo e agreste).
Para realizar as pinturas, Uchôa desencapa os guarda-chuvas, revelando o tecido que os recobre como uma possibilidade de pigmento. A seda barata se transforma então em mandalas, redemoinhos, rodas da vida girando e transformando paisagens reais ou interiores. Não deixa de ser curioso notar que esta “tinta” tem derivado em telas que falam de movimento e metaformose: elas podem ser varridas pelas Monções de Adamastor ou insinuar a deriva de placas tectônicas. Iluminadas pelo uso de cores contrastantes, eventualmente fluorescentes, trazem o devir de terremotos e trovões, além da sensação de deslocamento e de desequilíbrio que anuncia os pontos de mutação.
Esta capacidade transformadora atinge sua maior voltagem nas fotografias e fotoperformances. Para fazer estas imagens, Uchôa pode descarnar os guarda-chuvas e usar estas “peles” como pinceladas ou pixels, criando pinturas que resignificcam o ambiente escolhido. Nas cenas feitas nos poços e lagos de Alagoas, o que se vê são Ninfeias contemporâneas, com o material que se transformaria facilmente em resíduo descartável e lixo poluente encontrando um caminho de representação e integração com a natureza. Nas fotoperformances, o artista incorpora o “bicho-da-seda”, fundindo-se provisoriamente à sua criação. Uchôa “veste” um objeto esférico e percorre margens de rio, florestas e cenários urbanos, fotografando estas aparições, reinvenções de paisagens. Além da proximidade com um legado importante da arte brasileira – os Parangolés de Helio Oiticica; o Ovo e o Divisor de Lygia Pape; a instalação A casa é o corpo, de Lygia Clark – há nestas ações uma reiterada vizinhança com a cena que deu ao artista o primeiro insight para esta série.
Vestido como o “bicho”, ele se aproxima da mulher que carregava a sombrinha na paisagem de sua terra natal, cumprindo a máxima de Bruce Nauman: o artista podendo ser “uma fonte luminosa de espantar”. O bicho escravo e que escraviza se transforma então em um casulo de ambiguidades, vizinho da obra de Louise Bourgeois: se de alguma forma permanece como cela ou senzala (certas memórias não são apagáveis), também se revela como ninho e abrigo. Presença quase extraterrestre, de uma estranheza que pode ser uma vereda redentora na paisagem brasileira para a globalização de matriz chinesa.
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