Autofagia - Eu Devoro Meu Próprio Tempo
Fernando Cocchiarale
Em entrevista ao programa Mais Estilo, do SBT de Alagoas, levada ao ar em 27/07/2013, Delson Uchoa esclareceu a dinâmica processual de seu trabalho: “É um processo e é sempre soma. É o que eu sabia com o que estou sabendo agora – mesmo porque eu acredito que para a arte avançar ela precisa de alicerces que são feitos de herança e tradição que seriam sua identidade. Mas o resto é experimental”.
Tal declaração nos mostra que o sentido poético da obra de Delson pode ser esclarecido com base na combinação de sua identidade brasileira e nordestina com o teor experimental, conquistado por sua pintura ao longo de um processo iniciado na década de 1980 – período em que o artista, então vivendo no Rio de Janeiro, participa da Mostra “Como vai você Geração 80?” realizada, em 1984, na Escola de Artes Visuais do Parque Lage.
É visível que a trama cromático-luminosa de seu trabalho é referenciada tanto pela visualidade popular da região em que nasceu e foi criado, quanto pela visualidade brasileira. Mas é preciso considerar também que seu trabalho, simultaneamente, se inscreve na revalorização do fazer manual, observável na arte internacional da década de 1980, como alternativa ao avanço da desmaterialização da obra, proposto pela arte conceitual. Portanto os alicerces identitários da obra de Delson baseiam-se neste amálgama culturalmente herdado.
A história europeia da pintura registra que os ofícios eram separados com base em suas especificidades técnicas como aquelas que distinguiam pintura e escultura. Ainda no limiar da Renascença estes artífices eram fundamentalmente preparados para o domínio pleno de um único ofício, exercitado desde a adolescência. Sua formação era centrada no dia a dia das oficinas e dependia de processos resultantes de sofisticado aprendizado manual.
Entretanto, a incorporação trans-midiática ao cotidiano atual, produzida pela profusão de dispositivos de comunicação eletrônicos, seria, inversamente, uma antítese imagética contemporânea das práticas artísticas oficinais. Em tal contexto, meios convencionais, como pintura e escultura, legados pela arte do passado, tornaram-se comumente desafios conceituais para sua própria permanência e renovação. Mas é importante ressalvar que a proficiência artesanal, ainda hoje, não é em si mesma um problema. Problemática é a crença de que trabalhos de arte resultam somente de tal proficiência.
Uchoa tem plena consciência disso. Tal consciência é fator decisivo para sua busca poética de procedimentos técnicos alternativos ao quadro – tomado aqui literalmente, mas, sobretudo, como suporte de um universo a ser revisto conceitualmente – fundamental para a articulação do binômio “herança e tradição”, ligado à ideia de permanência, com a “experimentação” de novas técnicas e de conexões (edições) com outras mídias, a partir do campo ancestral da pintura.
O processo experimental do artista desdobra-se tanto técnica, quanto poeticamente. Este desdobramento é determinante, pois é impossível separar o papel da experimentação técnica e o da invenção poética, já que ambas surgem juntas.
Vale aqui, uma vez mais, o recurso à fala do próprio Uchoa:
“Grande quantidade de resina vinílica é derramada no piso de lajota (barro batido) do ateliê. Sobre esta camada é somado o pigmento, como num afresco, onde pintura e suporte são produzidos ao mesmo tempo. Essa pintura fica no chão até sua secagem completa, com os registros de uso. Posteriormente arrancada do chão, ela solta como um plástico que traz também na sua face interna aderências da terra, do barro onde ela foi moldada”.
Vê-se que os procedimentos técnicos inventados por Delson já apontam, no começo de cada trabalho, para a correlação entre arquitetura e pintura, amalgamadas desde a quadrícula formada pelo piso de uma das salas do ateliê, até sua captura por meio da aplicação de resina e tinta sobre o chão: quando secos, estes materiais produzem a película pictórica que cria a condição carnal da pintura, processo fundamental no trabalho de Delson.
O artista também esclarece-nos sobre suas principais frentes de experimentação técnico-poéticas:
“Meu trabalho atual salteia por lotes que formam famílias em meu acervo, onde opero vários procedimentos. Entre eles, visito meus trabalhos antigos que se agrupam em processos autofágicos, posto que são uma auto-alimentação. Já a pintura que é descolada do piso é da família das ‘Telas Cultivadas’ Para a esta exposição mostrarei dois momentos em um ao agruparmos uma família autofágica, com telas cultivadas.”
O método de produção dessas pinturas sem tela assimila ao fazer manual que evocam a prática da edição (método de totalização de um trabalho por meio da articulação de fragmentos), característica das novas mídias que também se infiltraram na organização espacial de seus trabalhos instalativos, próxima àquela das intervenções arquitetônicas.
Para além de seu impacto visual, a pintura de Uchoa aponta para uma questão fundamental – como trazer para a obra pulsões contraditórias, como a da oposição entre tradição e experimentação, sem ilustrá-la? Como intervir temporariamente em arquiteturas de espaços expositivos por meio da conexão de planos contínuos (painéis pictóricos) ou editados pelo artista?
Todos estes procedimentos experimentais que dinamizam a produção do artista conjugam-se a partir da carne e a pele químicas cultivadas no solo de barro em que o artista trabalha a fina carnalidade de suas telas cultivadas. Esse tênue arcabouço poético resulta materialmente da hibridização (edição) e do atravessamento de territórios da permanência e da transformação, da tradição à renovação que movem conceitualmente a pintura expandida de Delson Uchoa.
Visitar e manipular pinturas antigas é nutrir-se da própria obra; estabelecer um plano de permanente metabolização da minha própria linguagem, e
determinar o destino de se reconverter em si mesmo. Na autofagia eu procuro a totalidade, um desejo auto-idêntico, um conjunto de carácteres próprios
e exclusivos com os quais eu possa pensar-pintando. - Delson Uchoa